A origem do problema da justiça – breve esboço fenomenológico

 
Uma teoria filosófica do justo encontra, assim, sua primeira base na asserção segundo a qual o si só constitui sua identidade numa estrutura relacional que faz a dimensão dialógica prevalecer à dimensão monológica. (Paul Ricoeur)

É conhecida a máxima fenomenológica segundo a qual toda consciência é consciência de alguma coisa. Essa objetalidade dos estados da consciência é constitutiva dos seus modos de ser. Por isso ela não pode surgir para si mesma como um dado como outro qualquer, mas como um ato apreendido somente em objeção a si própria. É assim que se pode dizer, com ou sem Husserl (1), que o surgimento do problema da justiça é o primeiro fenômeno autêntico da autoconsciência (2).

Se é que ainda se trata aqui de uma importante questão filosófica, convém não deixarmos escapar esse ponto. Pois ele também diz respeito a uma compreensão pragmática do modo como a consciência entra em relação consigo. Sob este aspecto, vale destacar que agir como “causa de si mesmo”, que é o modo necessário de todo vir a ser autoconsciente, consiste antes no movimento de uma consciência originariamente co-agida, isto é, estruturada que está, em si e para si, a “ter que agir” (tomar uma decisão). A consciência deixa de ser então a expressão de uma agência puramente intencional, para enfim encarar a pergunta sobre como deve julgar o curso de suas ações. E julgar o curso de uma ação significa sempre atribuir-se ou não o direito de fazer alguma coisa. O surgimento do problema da justiça não condiz, portanto, com a estrutura de uma consciência essencialmente unívoca, mas com a natureza dialética de uma atividade (a autoconsciência) que só pode ser vivenciada em razão justamente dessa outra consciência de si.

Como se pode notar, não estamos, aqui também, tão distantes do pensamento de Hegel, embora talvez mais céticos quanto à morfologia metafísica do “reconhecimento”. Com efeito, a tese de que “toda consciência de si é, em si e para si, uma outra consciência de si” (3), apesar de sua singular originalidade, somente poderá adquirir um sentido filosoficamente atual se a abstrairmos do seu contexto idealista de fundo. Em outras palavras, se o que está em jogo é uma descrição histórica da consciência (e não, como também pretendia Hegel, uma descrição consciente da história!), parece razoável nos concentrarmos menos no telos de um movimento supostamente “racional” das relações humanas do que nas condições psiquicamente ontogênicas da autorrelação prática da consciência. E isso quer dizer simplesmente que o outro, para além de qualquer idealização do seu rosto, é o que sempre aciona em nós a “experiência de uma presença influente”, com base na qual as próprias regras de coordenação das ações passam a ser um problema em comum (4). Ou seja: se a consciência de si é a capacidade de experimentar-se a si mesmo como causa de suas próprias ações, e desde que qualquer ação consciente envolva também a exigência de coordená-la com outros agentes conscientes, então a busca pela justiça, isto é, daquilo que é “a cada um devido”, pode ser entendida como a condição fundamental da autorrelação prática do sujeito moral. A agonística (ou contradição), como se vê, é mais generativa que teleológica. Neste sentido, a questão sobre a origem do problema da justiça não deveria comportar a promessa de nenhuma grande síntese moral (quem testemunharia hoje a “vitória histórica” do reconhecimento?), senão quando esta última puder ser igualmente interpretada na forma de uma inevitável exigência política que marca a vida em sociedade.

Para esclarecermos melhor esse argumento, talvez devêssemos insistir um pouco mais na hipótese fenomenológica formulada no início. O “problema da justiça”, nesse caso, não corresponde a priori a nenhum conteúdo ético. Trata-se, no máximo, de uma “forma” ou princípio de ação, em cuja estrutura a consciência efetivamente se autorrepresenta. Como bem já constataram, a propósito, tantos estudos sociológicos contemporâneos (na esteira sobretudo da psicologia social de George Herbert Mead), a moralidade humana, para ser realmente inteligível, ao invés de ser descrita como um mero sistema prescritivo – uma realidade, pois, que atuaria externamente aos indivíduos – , deve antes retratar a maneira pela qual sofremos precisamente um “impulso judicativo”, isto é, tornando-nos, em primeiro lugar, esses agentes capazes de avaliar as situações em que nos encontramos (5). Sem julgamento, não haveria ação social.

Exemplo notável de radicalização desse modelo interpretativo pode ser encontrado no situacionismo metodológico de Boltanski e Thévenot. De acordo com tal perspectiva, trata-se de considerarmos ainda certas circunstâncias de interação social como situações governadas simbolicamente por demandas de justificação (6), ou seja, nas quais os agentes interpretam mutuamente suas ações em função do que estas últimas representam em termos de “justiça”. Isso não significa, é claro, que teríamos uma espécie de inclinação platônica para o justo, e sim que nos movemos no espaço moralmente qualificável da nossa própria posição em questão (ordem de grandeza), isto é, referente a cada estado particular em que nos encontramos em relação uns aos outros nas mais diversas instâncias interpelativas da vida social. Do ponto de vista da moralidade, portanto, o “problema da justiça” funciona como um drama primordial (para usarmos aqui uma expressão com inequívocos ecos goffmanianos) dos agentes sociais, cujo valor pode ser medido exatamente pelo seu significado prático para o estabelecimento e/ou contestação de papéis no desafio cotidiano da comunicação humana.

Como parâmetro ilustrativo, pensemos aqui no caso emblemático de alguns desentendimentos no trânsito. Mesmo estando os motoristas cientes da existência formal de um código, a violação é justificada, não raro, apelando-se para uma interpretação flexibilizante das regras, como se a pertinência do seu conteúdo devesse igualmente “prestar contas” a determinadas condições que autorizariam ou não a sua legítima aplicação. Obviamente, tais condições se referem à capacidade de cada agente envolvido de sustentar uma versão dos fatos de modo que essa nova representação produza também um novo julgamento moral, seja para ajuizar uma excepcionalidade que escape ao jugo da regra (uma urgência, um perigo iminente, uma distração inevitável etc.), seja para tão somente reafirmá-la (reforçando o caráter universal da norma). Mais uma vez, o “problema da justiça” não significa aí um compromisso firmado desde sempre com a imparcialidade e com a equidade, mas o fundamento dessa complexa engrenagem psicossocial que nos situa, no mundo concreto, em posições ora de acusação, ora de defesa, órbitas irredutíveis da vida em comum.

Cabe salientar que a suscetibilidade dos fatos morais a essa fenomenologia elementar do problema da justiça aponta unicamente para um enfoque explicativo de sua relação intrínseca com a estrutura da autoconsciência. A tese fundamental aqui é a de que a agência socialmente orientada possui uma conexão essencial com a “sujeição/sujeitabilidade” da ação. É essa mútua dependência dos agentes que inaugura o jogo interativo na medida em que interpõe ao fluxo da consciência um estado, por assim dizer, de súbita re-volta. É por meio então desse dramático acontecimento que a consciência individual acaba estabelecendo consigo uma ligação verdadeiramente originária (não confundir com “original”), aparecendo-se para a si mesma como objeto de uma avaliação que, de um ponto de vista fenomenológico, transcende a pura intencionalidade.

Qualquer que seja o caso, contudo, convém não esquecermos também de uma lição recolhida no campo das teorias do desenvolvimento moral. Em que pese o acento cognitivista de algumas delas (como em Piaget e kohlberg, por exemplo), permanece nelas a percepção de uma experiência absolutamente heterônoma do mundo social como condição de evolução do raciocínio moral. Dessa forma, a possibilidade de uma base de reciprocidade, a partir da qual os agentes podem construir em si mesmos a ideia de mútuo respeito fundado no princípio de universalização das regras, continua tributária de uma visão psicologicamente sujeitante da racionalidade. Sob o risco de parecermos repetitivos, talvez não custe lembrar que tal modo de enxergar a moralidade não quer dizer necessariamente a pacificação dos dilemas e das disputas na vida adulta, uma vez que a moral consiste sobretudo numa função simbólica, cuja eficácia dependerá sempre de uma articulação coordenada de interesses.

Ora, é dentro desse curioso quadro hermenêutico em geral que a questão sobre o que é justo parece ganhar, enfim, um contorno crítico. Pois o que nela há de imediatamente tautológico (o que devemos, afinal, àqueles que também nos devem?) reflete o movimento de uma consciência – ou a consciência de um movimento – à procura ainda de um fim. Cedo ela aprende, por exemplo, que o mundo que se descortina à sua frente é o tribunal de sua própria presença. Essa dívida, contraída em nome do que a torna finalmente autoconsciente, nunca se (a)paga. Mas se ela age porque outra consciência de si assim o exige, então haverá de exigir também o que pode garantir a ela um movimento autônomo, em virtude desse mesmo “dever”. Eis porque, para qualquer teoria normativa da justiça, é o estrutural conflito axiológico entre liberdade e igualdade que define o único escopo possível de abordagem.

No panorama contemporâneo da filosofia política, considero ser ainda a obra de John Rawls aquela que melhor respondeu, a despeito de suas restrições teóricas, ao desafio apontado acima. Esse desafio consiste, a rigor, no caráter irremediavelmente político da busca pelo que torna possível a articulação do nosso senso de justiça (que, no fundo, é o senso do problema da justiça!) com a crença de podermos chegar a um acordo razoavelmente equitativo sobre os “direitos” que, em última análise, fundamentariam a relação de cada cidadão uns com os outros.

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(1) Assim escreve Carlos Alberto Ribeiro de Moura, logo no prefácio de Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica (Ideias & Letras, 2006, p.21), de Husserl: “Quando percebemos um objeto, ele sempre nos é dado segundo uma determinada perspectiva, segundo um certo modo de doação ou fenômeno. Podemos variar nossas perspectivas sobre esse objeto, mas ele sempre nos será dado segundo um ou outro modo subjetivo de doação. Nós nunca temos acesso à ‘coisa mesma’, se entendermos por isso um ser sem perspectiva subjacente a este ser que nos é dado por perspectivas (…). Desde então, o que será o ‘objeto’, fenomenologicamente considerado? Ele só poderá ser interpretado como a síntese das múltiplas significações que o descrevem.” Por tal insuspeita força lógica do argumento, talvez não seja descabida a suposição de uma genuína contradição na própria “conformação donatária” da autoconsciência, subjetividade, (d)ela mesma, objetora. De igual modo, permanece aqui a senha inolvidável de Derrida: “trair por fidelidade”, tal como parece fazer Paul Ricoeur em uma das últimas palavras escritas justamente em O Si-Mesmo como Outro (Martins Fontes, 2014, p.422): “(…) Talvez o filósofo, enquanto filósofo, precise confessar que não sabe e não pode dizer se esse Outro, fonte da injunção, é um outro que eu possa considerar ou que possa me contemplar, ou meus ancestrais dos quais não há representação, a tal ponto minha dívida para com eles é constitutiva de mim mesmo, ou Deus – Deus vivo, Deus ausente – ou um lugar vazio. Nessa aporia do Outro, o discurso filosófico se detém.”

(2) Pense-se aqui no modelo matricial de qualquer julgamento (acusação x defesa – audi alteram partem!) e daí mesmo seguir-se-á a imagem de uma consciência que, voltada intencionalmente/objetalmente para si mesma (isto é, como autoconsciência!), só poderia ser apreendida, ato que sempre é, como objeção a si própria (outra consciência de si), como experiência imediatamente “contradita(da)” e autocompositiva – uma dialética, em suma. Reconheço, por exemplo, a complexa discussão sobre esse tema da autoconsciência que levou Husserl a acolher parcialmente a tese “conjuntiva” de Brentano segundo a qual todo ato é consciência de objeto e consciência de si próprio enquanto consciência de objeto (essa discussão é esplendidamente desenvolvida pelo Prof. Pedro M. S. Alves em É a autoconsciência uma forma de intencionalidade?). Contudo, ponho em causa tanto a hipótese fenomenológica clássica (sob a figura de um suposto “ego transcendental”, como se devêssemos consentir com a existência {naturalmente?} dada de uma “interioridade absoluta” e/ou pré-reflexiva {ser não-fenomenal, vestígio metafísico/substancialista do cogito} da consciência, a despeito daquilo que a caracteriza precisamente como atividade – sempre aqui e agora e em compasso com a fenomenalidade radical de toda e qualquer experiência) quanto as conclusões do referido Prof. Pedro M.S. Alves acerca do caráter “projetivo” da autoconsciência, de modo que pudéssemos discernir no próprio mundo percebido aquilo que deveria permanecer, a rigor, antes objecto do que projecto (e por isso mesmo já também subjecto!). Assim sendo, não reconheço nenhum outro argumento para esse fenômeno primordial que é a autoconsciência (enquanto ato voltado intencionalmente/objetalmente para si mesmo, e não como oblíqua e lateral aquisição/retenção psíquica de um ser aquém de sua própria fenomenologia) que não seja justamente a hipótese de uma consciência já remetida para o campo da razão prática (o que devo fazer?), ou seja, condenada, por assim dizer, a se colocar precisamente o problema da justiça no horizonte mesmo da autoconsumação intencional, tal como o fogo de Heráclito – que se revela ocultando e se oculta revelando. Pode-se especular até que ponto essa con-fusão entre noesis e noema na experiência da autoconsciência, em cujo limiar se revela o problema propriamente dito da consciência/ação moral (“dever-ser”), já não contém, implícita e paradoxalmente, aquilo que a faz convergir então para a única modalidade de “ser” da autoconsciência, vale dizer, a necessidade ineludível de buscar (decidir por) um curso de ação, trágico enigma de sua aparição para si – às vésperas, quem sabe, daquilo que Lévinas concebeu magistralmente como a “epifania do rosto do outro”.

(3) “De início, a consciência de si é ser-para-si simples, igual a si mesma mediante o excluir de si todo o outro. Para ela, sua essência e objeto absoluto é o Eu; e nessa imediatez ou nesse ser de seu ser-para-si é (um) singular. O que é Outro para ela, está como objeto inessencial, marcado com o sinal do negativo. Mas o Outro é também uma consciência-de-si; um indivíduo se confronta com outro indivíduo. Surgindo assim imediatamente, os indivíduos são um para o outro, à maneira de objetos comuns, figuras independentes (…). São consciências que ainda não levaram a cabo, uma para a outra, o movimento da abstração absoluta, que consiste em extirpar todo ser imediato, para ser apenas o puro ser negativo da consciência igual-a-si-mesma. Quer dizer: essas consciências ainda não se apresentaram, uma para a outra, como puro ser-para-si, ou seja, como consciência-de-si. Sem dúvida, cada uma está certa de si mesma, mas não da outra; e assim sua própria certeza de si não tem verdade nenhuma (…).” (HEGEL, GWF. Fenomenologia do espírito. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, Editora Universitária São Francisco, 2014, p. 144/145)

(4) “A autoconsciência não está no cérebro – ela pertence ao espaço relacional que se constitui na linguagem. A operação que dá origem à autoconsciência está relacionada com a reflexão na distinção do que distingue, que se faz possível no domínio das coordenações de ações no momento em que há linguagem. Então, a autoconsciência surge quando o observador constitui a auto-conservação como uma entidade, ao distinguir a distinção da distinção no linguajar.” (MATURANA, H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 28)

(5) Aproximo aqui duas pequenas notas de G.H. Mead que aparecem em Mente, Self e Sociedade (Editora Vozes, 2021) como exemplares dessa correlação pragmática e simbólica da ação social: a) “Como pode um indivíduo sair (experiencialmente) de si mesmo de maneira a se tornar um objeto para si mesmo? Esse é o problema psicológico essencial do si-mesmo ou autoconsciência, e a solução para ele só pode ser encontrada se nos referimos ao processo da conduta ou atividade social em que a pessoa está implicada” (p. 143); b) “Quando alguém fez uma coisa que é questionável ela não diz em primeiro lugar: ‘Isso é o que qualquer pessoa faria no meu lugar?’ É desse modo que a pessoa justifica a sua conduta quando é questionada. Que ela deveria ser uma lei universal é o argumento justificável que a pessoa apresenta diante de uma conduta questionada. Isso está muito longe do conteúdo do ato, pois a pessoa está segura que aquilo que está fazendo é o que quer que todos os demais façam, dadas as mesmas circunstâncias. Faça com os outros o que quer que façam com você. Ou seja: aja em relação aos outros do modo como deseja que eles ajam em relação a você, nas mesmas condições.” (p. 323)

(6) “Como uma ciência da sociedade pode esperar ser bem-sucedida ignorando deliberadamente uma propriedade fundamental de seu objeto, negligenciando que as pessoas são confrontadas com a exigência de responder por suas condutas, com apoio de provas, diante de outras pessoas, em relação às quais agem? Basta prestar atenção (…) nas justificações desenvolvidas pelas pessoas, na forma de palavras e ações, para ver que uma ciência social que feche os olhos dessa maneira não chegará a lugar nenhum e que o curso regular da vida exige um trabalho incessante a fim de manter ou se recuperar das situações que a ele escapam, recolocando-as em ordem. As pessoas, na vida cotidiana, nunca suprimem completamente suas aflições. Como os acadêmicos, elas não cessam de suspeitar, de se interrogar, de colocar o mundo à prova.” (BOLTANSKI, L; THÉVENOT, L. A Justificação. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2020, p. 127).

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