O Brasil como problema filosófico

Poucos meses antes de partir, Joel Rufino dos Santos (1941-2015) me presenteou com os dois volumes da obra “Consciência e Realidade Nacional” (1960), trabalho monumental que Álvaro Vieira Pinto (1909-1987) realizou enquanto dirigia o departamento de filosofia do célebre Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), no qual Joel foi também professor no departamento de história. O presente foi, para mim, motivo de duas gratíssimas alegrias: primeiro pelo simbolismo do gesto (a obra era parte de sua coleção particular!) daquele que me acolheu como um verdadeiro amigo, um mestre a quem não canso de apontar como um dos mais perspicazes intérpretes da vida social brasileira; segundo porque se trata de uma obra realmente magnífica, talvez a única a formular, em termos filosóficos, o problema específico da nossa condição de país subdesenvolvido em busca de se desenvolver. Assim que me entregou os dois volumes da obra, Joel me disse: “essa foi a filosofia da ideologia nacional-desenvolvimentista”.

A palavra “ideologia” parece hoje condenada ao fogo eterno. No entanto, mereceu, já àquela época, o tratamento propedêutico do filósofo: “Nada mais falso do que supor que ideologia seja fidelidade moral a um sistema de ideias abstratas. Isto é frequentemente fanatismo. Ideologia, no sentido da eficácia social, é a concepção de nova forma de ser para a existência comunitária, em razão da qual se carregam de valor, positivo ou negativo, todos os objetos, as ideias e os acontecimentos da realidade presente. Se não há projeto sem ideologia e se não há processo de desenvolvimento sem projeto, segue-se que a ideologia é fator que determina o desenvolvimento nacional.” (VIEIRA PINTO, 1960, pág. 34).

Ora, a hipótese central da obra de Vieira Pinto é hoje uma quase obviedade: nossa maior contradição histórica consiste no fato de ser o próprio subdesenvolvimento um fator do desenvolvimento alheio (daí porque nenhum suposto “desenvolvimento dependente” poderá efetivamente nos fazer desenvolver!). A negação desse fato tem sido o verdadeiro sintoma do nosso fanatismo político, a causa igualmente ideológica de uma série de mal-entendidos a respeito do papel do Estado brasileiro como guardião do pacto nacional. Não por acaso, foi esse mesmo fanatismo o grande responsável pelo clima de agitação social que precipitou o golpe de 64 e pôs fim ao governo popular de Jango. A essa “gloriosa” e bem-sucedida interdição (20 anos!) no processo de formação de uma ideologia autenticamente nacional, os meios de comunicação chamaram de “revolução”.

É verdade que, desde então, a percepção sobre a realidade social brasileira vem mudando consideravelmente, mas continua sendo assediada pelos mesmos interesses que a golpearam outrora. São eles que articulam, no plano sobretudo econômico, as condições materiais e políticas que ainda hoje lhes permitem dar as cartas, situando-se estrategicamente como barreira ao nosso desenvolvimento autônomo. O Brasil é, para eles, o que sempre foi para os seus ancestrais europeus: uma fonte inesgotável de recursos, uma colônia de exploração cujos habitantes não passam de uma gente indolente e preguiçosa, admirável apenas quando exibida sob a lente do exotismo ou quando docilmente servil aos seus objetivos. Esta é, aliás, a razão pela qual a luta histórica contra o racismo nunca foi concebida por Joel como um tópico descolado da “emancipação nacional”.

Mas quem fala em “emancipação”, fala também em “consciência”. E é aqui que entra o aspecto propriamente “filosófico” da obra de Vieira Pinto. Partindo de uma rigorosa aplicação do método fenomenológico ao exame da consciência nacional, defendeu haver, entre múltiplas modalidades possíveis, dois padrões extremos de consciência: a “consciência ingênua” e a “consciência crítica”. Para tanto, buscou elucidar precisamente o fundamento do seu raciocínio: “A tese fundamental a defender é a de que a consciência não existe à parte do real representado, como se fosse um interveniente estranho, que se superpusesse à realidade para percebê-la de fora, a distância. A relação da subjetividade ao plano real não é a de ligação entre um suposto mundo espiritual e o das coisas materiais (…), mas é a relação de ‘intencionalidade’. Este conceito, próprio da escola fenomenológica, merece ser aproveitado, desde que depurado de conotações idealistas. Pode servir para significar não a dependência do objeto em relação à consciência, mas a dependência desta em relação à realidade do mundo exterior. A consciência não tem existência em si, independente, destacada da coisa que representa, mas é sempre consciência de algo, tende sempre para aquilo que é a cada instante o seu objeto e se conforma exclusivamente no momento de representá-lo. Não o constitui como existente pelo ato de conhecê-lo, mas se constitui a si própria por este ato.” (VIEIRA PINTO, 1960, pág. 42/43)

A consciência ingênua seria aquela, portanto, que crê em sua intrínseca incondicionalidade. Concebe assim as ideias que representa como produto de um ato puramente voluntário do espírito. O mundo é, para ela, o silêncio do seu próprio condicionamento: o “outro lado” de uma relação que, todavia, permanece essencialmente ignorada. Na consciência ingênua, a subjetividade se encarrega de quase tudo, inclusive de manter a ilusão em que se funda o seu pretenso senso de objetividade. Segundo Álvaro Vieira Pinto, são atributos peculiares à consciência ingênua, por exemplo, o seu caráter sensitivo, o apelo à violência, a absolutização da sua posição, a incapacidade de dialogar, o moralismo, o culto do herói salvador, a visão romântica da história, o ufanismo (nada aqui é simplesmente coincidência!) etc.

Já a consciência crítica consiste justamente no contrário. Sabe que aquilo que a constitui como tal nunca coincide, em absoluto, consigo mesma. Por isso toma como sua primeira tarefa o desvelamento desse exato fenômeno, em cujo exercício acaba se tornando finalmente uma reflexão autêntica sobre a realidade objetiva. São categorias típicas da consciência crítica a objetividade, a historicidade, a racionalidade, a totalidade, a atividade e, por fim, a própria nacionalidade. Cito agora diretamente o filósofo: “A consciência crítica considera a situação humana de um modo que só a reflexão filosófica é apta a esclarecer. Ao invés disso, a consciência ingênua prescinde da filosofia, de que frequentemente zomba, pois não vê maior problema na formulação, tão simples, com que declara sua pretensão à verdadeira compreensão da realidade. A consciência crítica, porém, (…) sabe estar ligada ao processo da realidade nacional como um todo. Não julgando, como a outra, ter a incumbência de tomar a si o real, a fim de decidir do que é ou não é, esta forma de consciência, desde o primeiro momento em que põe o problema do seu ser, tem a certeza de sua correlação com a objetividade, sendo constituída, enquanto representação, pelo mundo objetivo. Ora, a realidade que lhe aparece como a condicionando, é apreendida como permanente mobilidade de coisas, pessoas, fatos, instituições, valores etc., isto é, enquanto processo que se desenrola no tempo, ou ainda, enquanto história.” (VIEIRA PINTO, 1960, pág. 85/86)

Quase sessenta anos após terem sido escritas, são essas as únicas palavras nas quais recolho algum consolo para encarar a dramática situação em que nos encontramos. Movemo-nos, ao que parece, num oceano de ingenuidade. Restam, entretanto, aqueles que ainda se dispõem a lutar por um projeto de desenvolvimento nacional que reative as energias populares e enfrente, com inteligência, os abusos do interesse estrangeiro. É em torno desse sentido de mobilidade que imagino ver a história do Brasil acontecendo.

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