Partindo-se da hipótese de que o conteúdo normativo de um juízo moral supõe também a expectativa de reconhecimento da validade pretendida por ele, pode-se admitir, na esteira da ética do discurso de Habermas, que o problema da deliberação moral depende pragmaticamente da existência de uma comunidade argumentativa capaz de tornar possível a troca de razões entre as diferentes partes afetadas com potenciais divergências acerca das consequências oriundas da aplicação da norma. Nesse sentido, o problema da validação normativa requer também um pacote particular de regras a fim de conduzir a argumentação na direção de uma consideração recíproca dos motivos que buscam vincular cada qual a um mesmo conjunto de direitos e deveres. Tais regras podem ser deduzidas, segundo Habermas, de uma análise transcendental da prática comunicativa, com base na qual o processo argumentativo pode ser visto como parte também das motivações do engajamento cooperativo dos indivíduos na coautoria de um único discurso prático (o que, afinal, devemos fazer?). No quadro a seguir, apresento então as regras gerais da deliberação moral de acordo com Habermas. Tomando como recomendação pragmática a natureza de certas predisposições comunicativas, ele identifica três planos de pressuposições da argumentação: “o plano lógico dos produtos, o plano dialético dos procedimentos e o plano retórico dos processos”. Seu objetivo é descrever, com isso, a estrutura mínima com que cada participante pode esgrimir seus argumentos sem violar, respectivamente, aspectos (1) semânticos, (2) metodológicos e (3) sociais. O esquema usado por ele está simplificado na forma apresentada por Robert Alexy, cujo catálogo se resume a três conjuntos de regras, a saber:
Catálogo de pressuposições da argumentação estabelecido por Robert Alexy
Aspectos semânticos | Aspectos metodológicos | Aspectos sociais |
1.1 – Nenhum locutor deve contradizer-se; | 2.1 – Todo o locutor apenas deve afirmar aquilo em que ele próprio acreditar; | 3.1 – Todo o sujeito dotado de capacidade de fala e de ação pode participar em discursos. |
1.2 – Todo o locutor que aplique um predicado F a um objeto a tem de estar disposto a aplicar F a qualquer outro objeto que se assemelhe a a em todos os aspectos relevantes; | 2.2 – Quem puser em causa um enunciado ou uma norma que não seja objeto do debate tem de aduzir uma razão para assim proceder. | 3.2 a. – Toda e qualquer pessoa pode problematizar toda e qualquer afirmação.
b. – Toda e qualquer pessoa pode introduzir toda e qualquer afirmação no discurso. c. – Toda e qualquer pessoa pode enunciar as suas atitudes, desejos e necessidades; |
1.3 – Não é lícito a locutores diferentes empregarem a mesma expressão com significados diferentes. | 3.3 – Nenhum locutor deve ser impedido, por uma coação que se faça sentir dentro ou fora do discurso, de usufruir dos seus direitos estabelecidos em (3.1) e (3.2). |
Obviamente, Habermas acusa o fato de que essa representação da ética do discurso corresponde a uma “situação ideal de fala”, para a qual nem sempre os participantes da argumentação contribuirão devidamente. Como agentes interessados e movidos por objetivos outros, indivíduos também podem agir de forma a anular as condições de validação normativa presumidas discursivamente. Quanto a esse ponto, em particular, parece lícito concluir que pouco se poderia fazer para garantir a probidade esperada da discussão. O máximo que se poderia pensar é, assim como sugere Habermas, admitir algumas providências institucionais para “neutralizar limitações inevitáveis e influências externas e internas evitáveis, até ao ponto em que as condições idealizadas (…) possam ao menos ser preenchidas de uma forma suficientemente aproximada” (HABERMAS, 2014, pág. 84) . Aqui, Habermas faz menção a um corpo protocolar de ações (autorizações, regimentos etc.) com a finalidade de fazer valer o conteúdo ideal das pressuposições da argumentação em condições empíricas. No âmbito do discurso prático, isso significa pensar ainda no ordenamento dos próprios espaços consagrados a tal fim (como o parlamento, por exemplo), de modo a reduzir os eventuais constrangimentos indesejáveis na perspectiva da validação normativa. Apenas quando essas condições mínimas forem observadas é possível dizer que o consentimento obtido reciprocamente pelos participantes do diálogo é fruto de um real engajamento cooperativo em torno da universalização e legitimação da norma, vale dizer, “se as consequências e efeitos colaterais que presumivelmente resultam de uma observância geral da norma controversa para a satisfação dos interesses de cada indivíduo puderem ser aceites por todos sem coação.” (HABERMAS, 2014, pág. 85)
Referência:
HABERMAS, J. A ética do discurso (obras escolhidas; 3). Lisboa: Edições 70; 2014.