Dikálogo

I) O mais hermético na justiça é saber por que razão ela mesma só parece estar em equilíbrio entre a balança e a espada.

II) A modernidade é, num sentido bem preciso, a dificuldade de reduzirmos a política a uma questão unicamente de “afinidade cultural”. Aos que costumam subtrair esse fenômeno histórico do horizonte normativo da democracia restam apenas as formas pré-modernas de solução para os conflitos. A janela aberta para o autoritarismo nunca deixou de ser também uma espécie de metafísica comunitária.

III) Com exceção dos casos patológicos, um criminoso não se encontra alheio à sua condição também de agente moral. Seus valores podem ser completamente outros, mas a sua psicologia não. Ninguém é efetivamente capaz de agir sem um motivo que, aos seus próprios olhos, torne justificável a decisão de ir adiante. Um sujeito é, antes de mais nada, um indivíduo atormentado pela busca de justiça (“a cada um o que lhe é devido”!), e o fato de nem sempre julgar com sabedoria em nada muda a certeza de tentar “fazer valer” os seus direitos.

IV) Confundir a noção de “contrato social” com os poderes que falam em seu nome é uma falsificação grosseira do seu verdadeiro estatuto filosófico. Esvazia justamente aquilo que ela carrega como instrumento de reivindicação e busca por justiça. O problema é bem prático: a cidadania precisa de uma linguagem política para se expressar. Se quisermos mesmo viver em sociedades cada vez mais diversas e plurais, temos de lançar mão de conceitos que favoreçam o exercício da reciprocidade entre os diferentes.

V) Um mundo livre da impunidade começa também pela honestidade com que julgamos a nossa própria capacidade de julgar.

VI) Medir a justiça pela régua exclusiva do direito é abdicar exatamente daquilo que deveria ser usado para medi-lo.

VII) Seria talvez um completo desastre negar à própria ideia de justiça o direito de ocupar o centro da reflexão filosófica. Para começar, não saberíamos como evitar o paradoxo dessa mesma contestação teórica (ah, a injustiça!), menos ainda quando assumida por quem, em distraído ceticismo, julgar-se-ia igualmente mais um pobre filósofo injustiçado.

VIII) Saber em que medida a norma hipotética fundamental de Hans Kelsen pode ser deduzida da epistemologia kantiana é uma questão tão relevante quanto saber se John Rawls chegou a especular sobre o que teria acontecido caso os ex-prisioneiros da caverna platônica tivessem finalmente chegado a um acordo sobre a verdadeira medida do perímetro do sol.

IX) O jurista que muito se debate em dúvidas acerca do então chamado ‘estado de direito’ parece não levar em conta que a realização da justiça não ocorre tanto no espaço (instituído) da legalidade, mas no tempo (instituinte) da legitimidade. Daí porque somente quando Hermes lhe mostrar a antiga origem desse princípio é que ele poderá encontrar a sua Musa o aguardando às margens do rio Lete – ou no lago de Narciso.

X) Somente além de qualquer estação conhecida o homem é capaz de justificar plenamente a voz do seu próprio desamparo. A verdadeira experiência do comunicável não se demora em lugares onde o exercício da linguagem já se incumbiu da tarefa de pronunciar fronteiras.

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