No limite, ética é o nome que damos à mais definitiva das questões morais: afinal, a quem cabe decidir sobre o próprio direito de quem pode ou não decidir?
A resposta a essa pergunta inaugura aquilo que conhecemos pela ideia de “justiça”. Com ela, atravessamos milênios, mares e compêndios tal como alquimistas de um antigo sonho dourado, prestes a encontrar a fórmula sob a qual a sombra da violência transformar-se-ia finalmente na virtude de dar “a cada um o que é seu”.
Não é preciso sucumbir ao ceticismo para saber no que esse sonho nos meteu. Hoje, cremos que basta a aparência solene da “lei” para nos sentirmos autorizados a ser o pesadelo dos que não pensam como nós. Nem mesmo o conceito de “direitos humanos”, cujo teor deveria impedir justamente a força do arbítrio, parece indicar agora uma referência em comum, sepultado que já se encontra nos corações arrebanhados pelo dogmatismo.
É sobre esse venenoso solo de ignorância e opacidade, onde o cinismo serve também de autoindulgência, que as artimanhas do paternalismo acabam prosperando. O seu velho truque, porém, permanece o mesmo: dizer que SABE o que é “melhor” para os outros. Por conseguinte, toma naturalmente para si o dever de ditar as regras, concentrando assim, na prática, todo poder de julgamento e decisão.
A Resolução CFM 2.232/2019, que “estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente”, contém alguns tristes emblemas desse velho truque. Classifica, por exemplo, como “abuso de direito” a liberdade de recusa terapêutica no caso de doenças transmissíveis ou “de qualquer outra condição semelhante que exponha a população a risco de contaminação.” (art. 5º, § 1º).
Trata-se, em suma, de uma perigosíssima classificação. No mínimo, peca por equiparar o direito à recusa terapêutica a uma decisão deliberada de prejudicar terceiros. Ignora, portanto, a alternativa do isolamento (voluntário ou não) como ponderação intermediária tanto da integridade física do paciente (obrigá-lo a submeter-se a tratamento significaria uma injustificável invasão do seu corpo!) quanto do interesse da saúde pública.
Mas isso ainda não é o mais grave. O referido documento inclui também na classe dos abusos o problema relativo à própria autonomia das gestantes. Neste caso, o documento alega textualmente que a recusa “deve ser analisada na perspectiva do binômio mãe/feto, podendo o ato de vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto.” (art. 5º, § 2º) Ou seja: poder máximo aos doutores!
Aqui há então, pelo menos, duas questões articuladas. A primeira diz respeito à flagrante tutela do corpo da gestante por parte de quem exerce a medicina. Como bem ressalta a matéria de Bruna de Lara publicada no The Intercept Brasil, “procedimentos altamente dolorosos e invasivos, como a episiotomia (corte feito abaixo da vagina na hora do parto, muitas vezes sem anestesia), poderão ser feitos mesmo que as mulheres afirmem expressamente que não os autorizam.”
Já a segunda concerne ao controverso direito de “objeção de consciência” concedido aos médicos. De acordo com o documento, por exemplo, a interrupção da relação do médico com o paciente por objeção de consciência “impõe ao médico o dever de comunicar o fato ao diretor técnico do estabelecimento de saúde, visando garantir a continuidade da assistência por outro médico, dentro de suas competências.” (art. 9º). Ora, mas até onde esse mesmo “dever” já não violaria igualmente os princípios da confidencialidade e da privacidade? A qual das partes isso realmente protege?
Talvez não seja mesmo um mero acaso linguístico o fato de ter a palavra “paternalismo” a origem que tem. Nela transparece, com toda a sua carga cultural e histórica, a semente ancestral do autoritarismo.