As Eumênides dormem, mas o crime as desperta.
Hegel, citado por Paul Ricoeur
A primeira dificuldade daqueles que desejam estabelecer uma abordagem do problema da justiça, bem como do seu derradeiro significado moral para a vida em sociedade, consiste em saber como determinar o aspecto mais decisivo desta mesma relação, isto é, a partir do qual o famoso adágio latino suum cuique tribuere (“a cada um o que é seu”) possa ser visto não apenas como princípio formal da justiça distributiva, mas como regra também de tratamento a quem julgamos abusar dos seus direitos.
Do ponto de vista da tradição filosófica, costuma-se definir como “justiça corretiva” a noção pela qual à responsabilidade por um dano corresponde igualmente uma reparação devida. A intuição básica expressa por essa noção é a de que nenhum delito ou mal infligido pode ficar impune, sob pena de colocar em risco a autoridade inquestionável da lei e da ordem. Assim, toda sociedade reserva também àqueles que desafiam as suas normas algum tipo de penalidade. Neste caso, o problema da justiça assume um caráter moralmente retributivo (um mal por outro), cujo sentido parece envolver, portanto, a realização de um desejo essencialmente punitivo.
Mas se é certo que podemos contar, por um lado, com a descrição do problema da justiça nos termos assinalados acima, por outro, devemos estar atentos para o que há de realmente significativo na hipótese de fundo. Para começar, a menção referente à “autoridade inquestionável da lei e da ordem” não aponta, a priori, para nenhum conteúdo substantivo além da reprovação universal da liberdade sem limites. Um criminoso condenado por assalto a banco, por exemplo, pode muito bem jurar de morte um comparsa que tenha eventualmente o traído. Tal fenômeno, aliás, não é incomum. Pois o que ele revela é, antes de mais nada, uma aversão profunda à falta de lealdade, testemunho daquilo que faz de cada um de nós um pequeno tribunal ambulante. A rigor, é esse o significado primordial do problema da justiça, já que se trata de focalizarmos precisamente o fato de que, por trás de nossas quase sempre indignadas exigências por reparação, partilhamos todos de um fundamento moral em comum.
Com efeito, um dos tropeços mais frequentes dos entusiastas das análises de Foucault sobre o nascimento da prisão moderna é dedicarem pouquíssima atenção à nossa condição primeira de agentes morais. Em que pese a sua indubitável perspicácia analítica em torno da configuração disciplinar da institucionalidade penal, tudo se passa como se a própria ideia de justiça fosse um mero produto discursivo da “vontade de poder”, cuja imagem virtuosa se deveria mais ao nosso ceticismo dissimulado do que às injunções psíquicas da moralidade humana. Todavia, basta um simples olhar para os episódios de linchamento popular em diferentes tempos e espaços para sermos logo surpreendidos pela constatação inevitável da antipatia geral pela impunidade.
Das palavras ditas até aqui, porém, ninguém pode deduzir que a realização do desejo punitivo seja um direito, em si mesmo, legítimo. Do contrário, teríamos de imaginar um mundo governado unicamente pela expectativa recíproca da vingança. Mais uma vez, convém acolhermos com menos suspeita o esforço de toda filosofia política de inspiração iluminista. Afinal, se a ideia é mesmo “fazer justiça”, que façamos também justiça ao incremento moral dessa ideia, começando pelo reconhecimento do enorme progresso histórico contido na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Daí por diante, quase nenhuma democracia digna deste nome se viu desobrigada a dar publicidade dos seus atos de justiça, motivando ainda, à luz de tal critério, o rito judicial do confronto entre acusação e defesa. Nesse sentido, se o direito pode ser interpretado como a “forma ritual da guerra”, como pretendia Foucault, não parece ser apenas para ocultar o cálculo estratégico dos poderosos, mas para sujeitá-los igualmente ao escrutínio daqueles que, em nome da paz civil, já não mais distinguem o senso de justiça do desejo de corrigir também o nosso atávico pendor à violência.