Uma hipótese sobre o desenvolvimento moral do senso de justiça

A dificuldade está em que o amor de várias pessoas é lançado na confusão a partir do momento em que as reivindicações dessas pessoas entram em conflito.

John Rawls

No princípio é o afeto: a dedicação emotiva de quem está sempre cuidando de nós. Logo se forma a certeza de que somos profundamente amados, assim como o desejo de retribuirmos tal devoção. A retribuição afetiva costuma ocorrer de duas maneiras. Na primeira delas, esforçamo-nos por corresponder às expectativas daqueles que nos amam, daqueles que são, portanto, a fonte da nossa própria autoestima. Buscamos nos tornar então o tipo de pessoa que eles parecem admirar e a querer por perto. Essa imagem é construída por exemplos de conduta (papéis sociais), cujo modelo é fornecido por um conjunto de regras e preceitos. Mas como não somos ainda capazes de julgar a validade dessas prescrições, isto é, como tudo no começo não passa de normas arbitrárias e sem sentido, nem sempre acabamos agindo de acordo com aquilo que é esperado de nós. Seguem-se daí, pois, as inevitáveis censuras às quais estamos sujeitos. E com elas talvez a nossa mais inconfundível experiência moral: o sentimento de culpa. Não porque agora já nos fosse revelado o verdadeiro motivo do nosso “pecado” (ainda nos faltaria o entendimento para discernir normativamente o “certo” do “errado”), mas pelo medo iminente de perdermos o afeto de quem é, para nós, a única luz e espelho do mundo. Em outras palavras, não suportamos o fato de provocar a tristeza a quem só gostaríamos de causar alegria! A segunda forma de retribuição afetiva nasce desse misterioso acontecimento, desse inescapável encontro marcado com o fenômeno do arrependimento. Pois a experiência de nos sentirmos culpados sempre nos conduz a um desejo também de reconciliação. E assim voltamos, mais uma vez, a querer corresponder às expectativas daqueles que nos amam, a tentar novamente ser dignos de sua dedicação emotiva, a querer representar, enfim, os papéis que nos conectam afetivamente a eles. 

Guardadas as ressalvas cabíveis, penso que esse pequeno esboço das primeiras etapas do processo de desenvolvimento moral contém os principais elementos daquilo que chamamos de “senso de justiça”. Para começar, não se trata de algo cuja origem e amadurecimento dependem unicamente de mecanismos cognitivos. Trata-se, muito além disso, de uma capacidade que desenvolvemos a partir das nossas disposições afetivas, ou seja, de uma competência emocionalmente adquirida para criar e estabelecer relações com base nas quais também contraímos uma autoimagem. Ninguém estaria em condições de julgar o que é devido a outra pessoa (e/ou a si próprio) sem antes já não ter em mente o tipo de laço que as une – ou que espera cultivar com ela. A rigor, são esses laços que dão a medida do quanto alguém se sente realmente “em dívida” com os seus semelhantes, do quanto são eles merecedores ou não da sua lealdade. Por isso são tão importantes os espaços de socialização (associações), em especial aqueles que nos põem em frequente contato com diferentes perspectivas e pontos de vista – em suma, com diferentes ocasiões práticas de cooperação e divisão de tarefas. É com base nesse processo que aprendemos a negociar os papéis que nos cabem ou não, em confronto direto com a lei da reciprocidade. Assim, se nos sentimos prejudicados ou “traídos”, não é porque apostamos todas as nossas fichas no valor intrínseco das regras (embora sem elas nada fosse possível!), mas porque reconhecemos que tudo começa, no fundo, com vínculos de confiança, essa espécie de injunção afetiva que, desde cedo, compele-nos a evitar também o sentimento de culpa, ainda que nunca estejamos completamente imunes a erros e deslizes. 

Se a interpretação que faço até aqui está correta, podemos dizer que o desenvolvimento moral do senso de justiça está diretamente relacionado ao tamanho do círculo de pessoas a quem julgamos dever (e cobrar) fidelidade. Isso não significa dizer que apenas aqueles com quem conseguimos estabelecer laços afetivos mais próximos sejam os únicos destinatários da nossa lealdade. Significa dizer, pelo contrário, que o ingresso nesse mesmo círculo afetivo leva quase sempre ao desejo de formar com ele uma comunidade mais ampla de direitos e deveres. Podemos, é claro, lutar contra esse desejo (é o caso, por exemplo, de todos os nossos preconceitos!), mas na medida em que passamos a compreender que os nossos mais caros afetos são igualmente beneficiados pela ampliação dos nossos mútuos compromissos com outros grupos e pessoas, isto é, que o futuro do seu próprio bem-estar depende da consideração de outros interesses (o que irá exigir, portanto, uma solução* para as divergências), concluímos ser também desejável dirigir a nossa lealdade àqueles com quem não desfrutamos de proximidade. A passagem, portanto, da imagem que atribuímos a nós mesmos como exemplos de “boas pessoas” (“o filho fiel”, “o amigo leal”, “o parceiro confiável” etc.) dá lugar então à construção de uma outra autoimagem, em cujo reflexo esperamos encontrar finalmente o rosto de uma “pessoa justa”.

Muitos estudiosos do desenvolvimento moral costumam ignorar essa relação primordial entre o senso de justiça e o processo pelo qual construímos afetivamente a nossa autoimagem. Costumam colocar mais ênfase nos mecanismos cognitivos que estão na base racional dos nossos juízos. É verdade que parte considerável do desenvolvimento moral deve estar centrado na nossa capacidade de emitir julgamentos, mas isso não quer dizer que os princípios que aprendemos a usar para justificá-los decorram exclusivamente dos conselhos da razão. Como já nos ensinou Kant, esta última não pode oferecer nada além de uma regra geral capaz de mostrar em que condições formais uma ação pode ser justificada. O chamado “imperativo categórico”, cujo mandamento prescreve a intenção de agirmos unicamente em virtude da validade universal pretendida pela ação, não pode, ele mesmo, explicar por que deveríamos, afinal, decidir por esta ou aquela norma, a menos que explique também em que sentido essa mesma decisão compromete ou não a relação de autorrespeito que esperamos construir em cada etapa da nossa vida. Como se pode constatar, a ancoragem do nosso senso de justiça envolve certamente uma complexa engrenagem psíquica, mas encontra o seu aspecto mais decisivo na elaboração de uma autoimagem normativa cuja integridade nunca estamos dispostos a renunciar – exceto pela experiência do arrependimento. Neste caso, fica mais fácil entendermos por que nos habituamos como adultos a pensar a justiça como sinônimo de “imparcialidade” (o que não equivale à neutralidade!), já que, de outra maneira, não saberíamos como evitar o sentimento de culpa e com ele também a expectativa, de qualquer forma dolorosa, de uma futura reconciliação.  

Podemos identificar o funcionamento dessa mesma engrenagem em situações bastante corriqueiras. Darei aqui apenas um exemplo. Suponhamos que morássemos em uma vila cujas casas possuam, cada uma, uma garagem. O estatuto da vila determina que todos os moradores devem guardar os seus carros em suas respectivas casas. Assim foi estatuído para garantir que as calçadas sejam realmente usadas em benefício da proteção dos pedestres. Contudo, um dos nossos vizinhos, de quem nos consideramos amigos e com quem costumamos trocar confidências, resolve um dia descumprir a regra, de cuja validade não temos dúvidas. Ele se justifica dizendo que aquela regra é um absurdo, que as calçadas são vias públicas (esquecendo-se de que é por isso mesmo que não devem ser usadas como estacionamento privado!) e que não deixará de colocar o seu carro na calçada. A reação dos demais vizinhos é imediata. Mas e quanto à nossa? O que teríamos a dizer a ele enquanto pessoas que, além de fiéis e leais aos amigos, também se julgam “justas”? Certamente faríamos de tudo para preservar os laços afetivos com o nosso amigo, buscando explicar a ele por que razão a natureza do seu pleito carece de fundamento. Mas e na hipótese de nosso amigo não ficar convencido e insistir na infração? Estaríamos dispostos a não confrontá-lo tal como julgamos que deveríamos? Ou melhor: estaríamos dispostos a comprometer dessa maneira o nosso próprio senso de autorrespeito, em cujo valor também depositamos o compromisso que assumimos com os demais vizinhos?

Com efeito, não é preciso levarmos muito longe essas perguntas para deduzirmos o que “cala fundo” em matéria de justiça. Talvez não seja por outra razão que tanta tinta já se tenha gastado sobre isso. Evidentemente, podemos fingir que não se trata de um assunto tão importante, que a solução para os nossos conflitos não passa por nenhuma pedagogia moral que ajude a repelir o espectro da anomia que ronda, de geração em geração, o modo pelo qual nos relacionamos uns com os outros. Restaria sabermos, todavia, quem explicará aos nossos filhos por que eles deveriam evitar andar sobre as calçadas.

  • * Eis aí o sentido propriamente dito do que chamamos de “contrato social”.

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Uma resposta para “Uma hipótese sobre o desenvolvimento moral do senso de justiça”

  1. […] “(…) capacidade que desenvolvemos a partir das nossas disposições afetivas, ou seja, de uma competência emocionalmente adquirida para criar e estabelecer relações com base nas quais também contraímos uma autoimagem. Ninguém estaria em condições de julgar o que é devido a outra pessoa (e/ou a si próprio) sem antes já não ter em mente o tipo de laço que as une – ou que espera cultivar com ela. A rigor, são esses laços que dão a medida do quanto alguém se sente realmente “em dívida” com os seus semelhantes, do quanto são eles merecedores ou não da sua lealdade. Por isso são tão importantes os espaços de socialização (associações), em especial aqueles que nos põem em frequente contato com diferentes perspectivas e pontos de vista – em suma, com diferentes ocasiões práticas de cooperação e divisão de tarefas.” (FORTES, P. Uma hipótese sobre o desenvolvimento moral do senso de justiça – Pablo Dias Fortes) […]

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