A maneira mais fácil de entendermos a distinção entre “ciência” e “ética” é pensarmos na diferença entre “fato” e “norma”. Fatos são coisas que descrevemos. Deles só podemos dizer se são verdadeiros ou falsos. Normas são coisas que prescrevemos. Delas só se pode afirmar se são justas ou não. As ideias de “certo” e “errado” não se aplicam da mesma forma para ambas as coisas. Fato é fato. Norma é norma. O problema começa quando confundimos a natureza descritiva dos juízos fáticos com o caráter prescritivo dos juízos normativos, dando assim origem a todo tipo de dedução falaciosa entre aquilo que “é” e aquilo que “deve ser”.
Ora, decisões sobre o que devemos ou não devemos fazer não são escolhas entre o verdadeiro e o falso. Seria ridículo sairmos por aí dizendo que a obrigação de usar máscara é uma norma, em si mesma, “verificável”; da mesma maneira que não faz sentido alegar que a proteção facial oferecida por ela corresponde, por si só, a um fato “justificável”. Decisões sobre o que devemos ou não devemos fazer não são, portanto, questões a serem resolvidas pela “observação científica”. São, rigorosamente falando, deliberações sobre o justo e o injusto, um problema unicamente de justificação moral. Por isso devemos pensar muito bem sobre o que botar na balança na hora de julgarmos também aquilo que é devido aos fatos. Se aos fatos só cabe o direito de ser o que são, convém não darmos a eles a autoridade que não têm.
Um exemplo: dentre as afirmações que circularam recentemente em defesa do retorno presencial das atividades escolares no município do Rio de Janeiro, a sentença de que “lugar de criança é na escola” parece, à primeira vista, uma afirmação simpática, recolhida na doce representação do ambiente escolar como um lugar naturalmente bom para as crianças. Mas basta olharmos com mais cuidado para o conteúdo implícito desse enunciado (“crianças não deveriam estar fora da escola”) para logo percebermos que ele não serve como justificativa moral. O seu sentido é prescritivo, mas apela para uma declaração fática a respeito da vida infantil e sua relação com a escola. Sim, parece não restar dúvidas de que, ao menos idealmente, seja possível verificarmos que a escola é um bom lugar para crianças, mas não foi por colocar isso em questão que pais e professores se viram, repentinamente, compelidos a afastá-las do ambiente escolar. Nunca esteve em jogo o fato de que a escola é ou não é “lugar de criança”, mas sim uma ponderação dificílima entre o dever de educá-las e a obrigação de protegê-las.
Quem quer que deseje refutar meu raciocínio com alegações e evidências sobre a “segurança” das escolas, recomendo voltar ao início do texto (e também um bom catálogo de falácias!). Como já disse antes: fatos são fatos, normas são normas. Quem espera provar que as escolas são ambientes seguros pode (e deve!) apresentar os seus dados. A questão aqui é outra. É saber se os dados que têm sido apresentados oficialmente são, manipulações à parte, suficientes para um escrutínio público de sua veracidade. A verdade não exclui o consenso quando a integridade dos fatos também depende do relato de quem os vive. Neste caso, a comunidade escolar não pode ser tratada como simples destinatária do discurso oficial, pois se trata também de parte interessada/afetada e fonte preciosa de informação, cujo testemunho é igualmente importante para que os pais se certifiquem de que mandar seus filhos para a escola não compromete o seu dever de protegê-los enquanto não estiverem devidamente vacinados.
Lembremos de que a pandemia do novo coronavírus é hoje, dentre todos os fatos, aquele talvez que mais desafia a ciência. Os números estão aí e não aconselham subestimarmos a magnitude do fenômeno. Sua dinâmica é indiferente à dor humana e só presta contas às leis implacáveis da natureza. Pode-se argumentar que a adoção de protocolos sanitários e de medidas de biossegurança compensam, em benefícios, os riscos de reabertura das escolas. Contudo, mais uma vez fica a pergunta sobre o que têm a dizer todos os interessados/afetados, e não somente um círculo de especialistas que, por mais competentes e bem intencionados que sejam, não estão autorizados a falar em nome da consciência moral de outras pessoas – menos ainda a substituir a voz de quem conhece mais de perto a realidade e o cotidiano das escolas.
Gostamos de acreditar que vivemos numa ordem social democrática. Afirmá-la, porém, é algo sempre mais difícil. Nos melhores manuais de filosofia política, encontramos facilmente o conselho de que uma norma só pode ser classificada como justa ou válida se todas as partes que são por ela afetadas aceitam as consequências resultantes de sua aplicação. Trata-se do bom e velho requisito da “legitimidade”, cujo sentido guarda franca relação moral com o reconhecimento de que a busca do consenso é o único princípio de governo capaz de encarnar os valores da liberdade e da igualdade. A suposição de que há riscos que são “aceitáveis” na proposta de reabertura das escolas não pode ser feita sem uma ampla consulta àqueles a quem cabe justamente o encargo de aceitá-los. A virtude da justiça pode até parecer uma ideia muito abstrata para certos “cientistas”, mas é curioso constatarmos que ninguém deixa de reivindicá-la quando se trata de queixar-se moralmente de algum tratamento imerecido.