Advertência:
O conceito de “ética” pode admitir muitas definições, a depender da abordagem que empregamos para tal fim. Aqui, optamos por uma abordagem francamente inspirada em Paul Ricoeur, para quem a ética se define como uma “reflexão de segundo grau sobre as normas” (RICOEUR, 2008b, p.50). Trata-se, portanto, de uma definição preocupada em destacar o momento mais problemático da reflexão ética, isto é, quando a pergunta sobre o próprio sentido do que seja a “vida boa” (nível teleológico) se transforma em uma indagação sobre o que é “devido a cada qual” (nível deontológico). Como bem já lembrou Aristóteles, a vida humana não se realiza fora da pólis (cidade), cujas leis também representam uma divisão de direitos e deveres em vista do “bem comum”. Neste caso, a pergunta sobre como podemos julgar a validade de uma norma se mostra crucial. Ela ressurge, por assim dizer, no horizonte de qualquer reflexão ética, na medida em que nenhuma ação ou escolha pode evitar a consequência de afetar outros agentes morais. Quem quer que se sinta prejudicado pelo modo como eu decido levar a minha vida pode erguer uma objeção que, no plano de uma investigação metamoral (isto é, que não se restrinja à mera prescrição de normas!), obriga-me a justificar as minhas escolhas. Logo se vê então por que motivo o problema da justiça não deve ser encarado como uma questão secundária da ética, pois aparece ali mesmo onde o juízo que faço sobre o que é bom ou não esbarra com o juízo que outros são capazes de fazer. Não é por outra razão que autores como Rawls, por exemplo, afirmam que a estrutura de uma teoria ética depende do modo como ela correlaciona as noções de “bem” e de “justo” (RAWLS, 1997). Trata-se, em suma, de uma abordagem filosófica interessada em pôr em evidência a maneira como cada perspectiva ética retrata essa preocupação com a validade normativa de suas prescrições.
Em face destas considerações, apresentamos abaixo um quadro-resumo das principais perspectivas éticas segundo o problema da validade das normas, isto é, segundo aquilo que deveríamos levar em consideração a fim de justificá-las. O seu propósito não guarda a pretensão de ser a “palavra final” a respeito de cada uma delas. Antes, deve ser encarado como um recurso didático, concebido unicamente para dar maior destaque aos diferentes enfoques filosóficos que elas oferecem.
Quadro-resumo das principais perspectivas éticas segundo o problema da validade das normas
Uma norma é justa ou válida na medida em que ela é capaz de… | Por quê? | |
Immanuel Kant | …representar uma máxima universal. | Porque somente agindo de modo a querer servir de exemplo para todas as pessoas um sujeito é capaz de exercer livremente a sua própria razão, isto é, desonerando-se de qualquer outro compromisso que não seja o de expressar uma vontade considerada boa em si mesma. |
Utilitarismo | …garantir o maior bem-estar possível ao maior número de pessoas e/ou concernidos morais. | Porque em vista da nossa natureza de seres sensíveis (capazes de experimentar dor e prazer) e da aspiração a uma vida feliz, é mais racional e útil buscarmos produzir o máximo de bem-estar possível, de modo a minimizar também aquilo que pode nos causar sofrimento. |
Ética das virtudes (Aristóteles) | …encarnar uma ação virtuosa. | Porque ao determinar a medida daquilo que separa um “excesso” (vício) de uma “carência” (outro vício), somente a prática da virtude é capaz de expressar a excelência de um caráter baseado igualmente no exercício da prudência (sabedoria prática). |
Ética do discurso (Habermas) | …obter o consenso de todas as partes que são por ela afetadas por meio de uma argumentação racional. | Porque todo aquele que ergue uma pretensão normativa perante outros agentes morais parte também do pressuposto de que todos os seus destinatários são capazes de reconhecer o mérito da própria norma em questão. |
John Rawls | …aplicar os princípios de justiça escolhidos na “posição original”. | Porque somente uma concepção pública de justiça (os princípios escolhidos de comum acordo na chamada “posição original”!) representa um ponto de vista legítimo a partir do qual i) haja uma distribuição equitativa dos bens sociais; e ii) diferentes reivindicações em conflito possam ser julgadas. |
Amartya Sen | …dotar os indivíduos da capacidade de combinarem diferentes funcionamentos de acordo com suas preferências. | Porque todo e qualquer indivíduo merece a mesma chance de poder escolher livremente o modo pelo qual gostaria de levar a vida. |
Axel Honneth | …promover a expansão das relações de reconhecimento. | Porque somente com base na expansão das relações de reconhecimento é possível satisfazer as expectativas de autorrealização de cada indivíduo, contribuindo assim também para a ampliação dos laços de solidariedade entre os membros da sociedade. |
Referências:
RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
RICOEUR, P. O justo: a justiça como regra moral e como instituição. São Paulo: WMF
Martins Fontes, v.1, 2008a.
__. O justo: justiça e verdade e outros ensaios. São Paulo: WMF Martins Fontes; v.2,
2008b.