“Liberdade” e “valor da liberdade”em Rawls

Deixo aqui registrada uma explicação a respeito de uma dúvida colocada por uma aluna em relação à diferença entre “liberdade” e “valor da liberdade” que, em Rawls, aparece em um trecho de Uma Teoria da Justiça (referência abaixo), mais especificamente na página 221. A fim de facilitar o entendimento, reconstruo a sequência inicial do diálogo que motivou o nosso debate.

Em primeiro lugar, o objeto de estranhamento foi a distinção feita por Rawls entre liberdade (“sistema completo das liberdades de cidadania igual”; p. 221 {grifo meu}) e valor da liberdade (“capacidade de promover seus fins dentro da estrutura definida pelo sistema”; p. 221 {grifo meu}). A essa distinção se seguiu a lembrança de outra afirmação de Rawls segundo a qual o “[…] valor menor da liberdade é (…) compensado, uma vez que a capacidade dos membros menos afortunados da sociedade para conseguir seus objetivos seria ainda menor caso eles não aceitassem as desigualdades existentes […]”; p.222 {grifo meu}. A combinação desses dois argumentos lidos de forma isolada pode realmente nos levar a conclusões inconsistentes (sobretudo se usamos o raciocínio indutivo como critério de inferência, em detrimento do raciocínio dedutivo), e o exemplo oferecido deu claro testemunho disso. O exemplo evocou a hipótese de que, com base nessa leitura, seria admissível que Rawls justificasse a existência de “escolas ruins” (p.e: liberdade = X) para os menos favorecidos, desde que a outra alternativa para esse mesmo grupo fosse “não haver escolas” (p.e: liberdade < X).

Como busquei explicar, não acredito que essa conclusão seja possível quando levamos em consideração a relação entre os dois princípios escolhidos na posição original.  Concentrei o meu argumento num esforço interpretativo dessa mesma relação, em particular no que diz respeito à prioridade do primeiro princípio, cujo conteúdo expressa claramente o compromisso com o “mesmo esquema de liberdades básicas para todos”. Ou seja: tudo vai depender de quais liberdades básicas representam, para a sociedade, o conjunto mais adequado do sistema de liberdades (isto é: direitos!) que garantem a igualdade entre os cidadãos. Aliás, isso fica muito claro quando ele acrescenta, na própria página 221, a seguinte afirmação, logo após a distinção estabelecida entre liberdade valor da liberdade: “A noção de liberdade como liberdade igual é a mesma para todos; não surge o problema de se compensar uma liberdade que não atinja o requisito mínimo de igualdade.”; p.221 {grifo meu}, ou ainda quando ele afirma, já na página seguinte, que “[…] não se deve confundir a compensação do valor menor da liberdade com a afirmação de uma liberdade desigual”; p.222 {grifo meu}.   

Mais uma vez, reforço aqui o meu entendimento de que, à luz da teoria rawlsiana, jamais permitiríamos (considerando a aplicação da sequência dos quatro estágios à realidade do Brasil!) que o direito à educação fosse excluído daquele mesmo conjunto de direitos que garantem apropriadamente um requisito mínimo de igualdade (liberdade igual). Pois a questão é justamente essa: se constatamos que um grupo de cidadãos tem um “valor menor de liberdade” em relação a qualquer direito básico (no sentido de estarem privados de algo que já diz respeito àquilo que está previsto pelo primeiro princípio), então já deveríamos ter concluído também que se trata de um caso gravíssimo de injustiça social, e não de um caso que pudesse ser tratado pela aplicação do princípio da diferença.

Essa passagem um tanto quanto ambígua (e que eu classifiquei em aula como uma possível “casca de banana”) tem a sua razão de ser. Primeiro porque ela está relacionada mais diretamente a diferentes níveis distributivos de renda/riqueza e autoridade, e não a qualquer outro bem social, direito ou liberdade básica. Trata-se, portanto, de matéria a ser regulada, quando for o caso, pela aplicação da segunda parte do segundo princípio (princípio da diferença). Isso, claro, se as condições do primeiro princípio (liberdade igual) e da primeira parte do segundo (igualdade de oportunidades) já estiverem sido satisfeitas. Daí a minha preocupação em destacar a necessidade de não interpretarmos os princípios defendidos pelo Rawls de forma isolada. Os princípios se aplicam a âmbitos distintos, mas essa aplicação também obedece a uma ordem de prioridade entre eles.

A segunda razão guarda relação com certo incômodo que sinto em ver a tradução de “worth” por “valor”, sem ao menos um comentário acerca de um eventual desvio semântico que esta última palavra pode assumir também em português. Confesso que não acho a escolha mais adequada (nesse contexto argumentativo) na medida em que pode suscitar dúvidas e gerar confusão. O melhor critério que conheço para esses casos é sempre a opção que oferece menos resistências a possíveis leituras ambíguas. Por exemplo: na própria definição utilizada pelo Rawls a noção de valor de liberdade assume como referência a ideia de “capacidade” (capacity, na versão original). Ou seja: ele usa essa expressão “worth of liberty” em vista daquilo que somos efetivamente capazes de realizar ou não, isto é, como uma medida de avaliação/comparação. Neste caso, é claro que podemos observar na realidade a existência de diferentes graus de capacidade que, em matéria de renda e autoridade, designam diferentes situações socioeconômicas e posições de poder. Assim, também é claro que o “valor da liberdade” de alguém que concentra mais riqueza e autoridade é “maior” do que o “valor da liberdade” de alguém que esteja no grupo menos favorecido, mas apenas na medida em que esse mesmo “valor da liberdade” confere a ele um grau maior de capacidade (eu diria até que impõe também um grau maior de responsabilidade!).

Repito: não há, neste caso, nenhuma base razoável para concluirmos daí que o grupo dos menos favorecidos deva se contentar com qualquer coisa que ameace o seu estatuto de cidadania igual. O problema é que, em português, a palavra “valor” comporta também uma conotação muito fortemente ligada à ideia da “devida consideração”, o que pode induzir a interpretação de que a liberdade de alguns seria, em termos éticos e morais, mais valiosa do que a liberdade de outros. Afinal, como conclui o próprio Rawls nesse mesmo parágrafo que motivou nosso debate: “[…] não se deve confundir a compensação do valor menor da liberdade com a afirmação de uma liberdade desigual. Juntando-se os dois princípios, a estrutura básica deve ser ordenada para maximiza o valor [capacidade] para os menos favorecidos, no sistema completo de liberdade igual partilhada por todos. Isso é o que define o fim da justiça social.”; p. 222 {grifo meu}.  

 

Referência:

RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes; 1997.

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