Sabe-se que a teoria da justiça de John Rawls consiste em um esforço filosófico voltado à elaboração de um ponto de vista normativo capaz de equacionar potenciais divergências a respeito do que é devido a cada cidadão em matéria de direitos e deveres básicos. Nesse sentido, defende que apenas uma concepção política de justiça, isto é, calcada em princípios publicamente aceitos como critérios válidos de julgamento, pode arcar com o requisito de legitimidade exigido no contexto das democracias constitucionais modernas. Para tanto, desenvolve o famoso argumento da “posição original”, cujo objetivo é descrever precisamente o resultado de um (suposto) acordo entre cidadãos submetidos à condição do chamado “véu da ignorância”, vale dizer, uma situação de radical equidade (fairness) entre aqueles que devem decidir então os princípios da justiça social sem conhecerem os seus próprios interesses particulares relativos ao verdadeiro lugar que ocupam na sociedade.*
Ora, um problema frequentemente apontado nesse esforço filosófico de John Rawls foi a necessidade de criar um experimento mental hipotético com base numa abstração quase absoluta dos cidadãos como pessoas dotadas apenas de dois atributos psicológicos: i) a capacidade de elaborar uma concepção de bem (racionalidade) e ii) a capacidade para o senso de justiça (razoabilidade). Nesse sentido, restaria a pergunta sobre qual base motivacional valeria como genuíno veículo subjetivo para o engajamento cooperativo entre as partes em busca de um acordo interpretado – para todos os efeitos! – como algo mutuamente benéfico. Habermas, por exemplo, é enfático ao destacar essa espécie de “déficit comunicativo” na estrutura argumentativa da posição original (HABERMAS, 2011, p. 107-145). Além disso, o próprio Rawls reconhece não haver nenhuma outra razão para o seu argumento além de uma tentativa de “eliminar as posições vantajosas de negociação que, com o passar do tempo, inevitavelmente surgem em qualquer sociedade como resultado de tendências sociais e históricas cumulativas” (RAWLS, 2003, p. 22). A conclusão, portanto, é inevitável: afinal, se a ideia é justamente afastar vantagens indevidas por meio de um acordo público, por que excluir desse mesmo procedimento deliberativo a alternativa de uma crítica avaliativa dessas mesmas “posições vantajosas de negociação”? Por que subtrair às partes a chance de conhecerem o ponto de vista de tais posições para só então concluírem, realmente de “igual para igual”, se estão ou não de acordo com aquilo que ele pode oferecer?
Todavia, tudo parece mudar quando deslocamos o argumento da posição original de sua própria localização teórica de origem e passamos a interpretá-lo a partir de outra perspectiva também discutida por Rawls em Uma Teoria da Justiça. Falo aqui, particularmente, da perspectiva correspondente àquilo que ele classificou como “moralidade de princípios”, ou seja, um ponto de vista moral cuja principal característica é o respeito assimilado aos demais cidadãos na forma de um desejo de julgar os conflitos sociais de modo imparcial. (RAWLS, 1997, p. 524-531). Neste caso, não se trataria mais da necessidade de formalizar, em termos hipotéticos, os elementos de uma perspectiva moralmente centrada no procedimento normativo ideal, mas de acolher um sentimento essencialmente político ligado à expectativa de considerar interesses que, na verdade, jamais poderiam ser totalmente conhecidos e representados, por mais criteriosa que seja a aplicação das virtudes da racionalidade e da razoabilidade. Em tais circunstâncias, o “véu da ignorância” se assemelharia menos a um traço formal do argumento (a condição objetiva de equidade segundo a qual nenhuma das partes deve saber o seu verdadeiro lugar na sociedade) do que a uma exigência autoimposta do cidadão em imaginar uma situação em que ele mesmo se veja o mais distante possível (princípio da imparcialidade) dos seus próprios interesses particulares, isto é, o mais próximo possível daqueles com quem deve estabelecer exatamente um acordo público que seja benéfico para todos.
* De acordo com Rawls, o resultado desse acordo se resume aos seguintes princípios:
i) cada pessoa tem o mesmo direito irrevogável a um esquema plenamente adequado de liberdades básicas iguais que seja compatível com o mesmo esquema de liberdades para todos; e ii) as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições: primeiro, devem estar vinculadas a cargos e posições acessíveis a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades; e, em segundo lugar, têm de beneficiar ao máximo os membros menos favorecidos da sociedade. (RAWLS, 2003, p. 60)
Referências:
HABERMAS, J. A inclusão do outro. São Paulo: Editora UNESP, 2011.
RAWLS, J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
______. Justiça como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins F