Justiça e Dívida

“A cada um o que lhe é devido” (suum cuique tribuere)

Devido-dívida – é interessante a gente pensar na própria dificuldade que a gente tem de pensar a questão da justiça sem uma linguagem que utilize o mesmo vocabulário empregado no discurso econômico.

1a hipótese:

Nietzsche (Genealogia da Moral) – é nesse vocabulário que encontramos a exigência de um velho costume estabelecido pelos seres humanos em torno da prática de fazer comparações entre si. Para Nietzsche, esse costume nasceu juntamente com os atos de compra e venda, que para ele é o modelo primordial das relações humanas, o modelo que teria nos fornecido a ideia de que a tudo pode ser atribuído uma medida e, consequentemente, de que a tudo pode ser fixado um “preço” que deve ser pago. Como ele mesmo escreveu: “Os atos de compra e venda, junto com seu acessório psicológico, são mais antigos do que os inícios de quaisquer formas de organização social e associações: a partir da forma mais rudimentar do direito da pessoa é que primeiro se transportou de fato o sentimento embrionário de troca, contrato, dívida, direito, obrigação, aos mais rudes e incipientes complexos de comunidade (…), ao mesmo tempo com o hábito de comparar um poder a outro, de medir e calculá-los. O olhar estava focado nessa perspectiva; (…) logo se chegou à grande generalização do ‘cada coisa tem seu preço; tudo pode ser pago’ – o mais antigo e primitivo cânone moral da justiça (…).” (NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São Paulo, Martin Claret, 2017, p. 109).

2a hipótese:

Mas há também uma outra hipótese. Uma hipótese a respeito da verdadeira “idade” desse costume estabelecido em torno da prática de fazer comparações e avaliar daí o que é devido a quem. Trata-se de uma hipótese ligada não mais a qualquer especificidade cultural “humana”, como no modelo comercial dos atos de compra e venda, mas a um comportamento observado no reino animal e que nos leva a especular hoje em dia se tal “costume” já não pertence também ao domínio de certas disposições emocionais que compartilhamos com outros primatas e demais animais sociais, como é o caso da inveja e do ciúme. Somente uma perspectiva já colonizada pela ideia de uma suposta “superioridade humana” pode ignorar essa e outras condições relativas ao aparecimento do senso de justiça entre criaturas empenhadas em lidar com seus próprios impulsos de cobiça e, simultaneamente, com a necessidade coletiva de cooperação. Mas graças a observações feitas por etólogos e primatólogos, já temos notícia de que os animais capazes de formar grandes grupos também são movidos por emoções ligadas ao julgamento de abusos como modo de resguardarem a coesão do grupo. Em um texto dedicado à inteligência emocional dos animais, o primatólogo Frans de Waal ilustra bem o fenômeno com um exemplo de uma chipanzé adolescente que interrompeu uma briga entre dois filhotes que disputavam a posse de um galho frondoso. Ela tirou o galho deles, partiu-o em dois e entregou uma parte a cada um, cessando assim o conflito. Outro exemplo notável citado por ele foi o de uma fêmea bonobo que participava de testes num laboratório de cognição. Ela ganhava recompensas na forma de comida em troca de algumas tarefas realizadas. Os seus amigos e parentes olhavam tudo à distância, e ela sentiu os olhos invejosos em cima dela. Após algum tempo, a fêmea começou a recusar as recompensas apontando para os outros, até que eles também fossem agraciados com a comida. Só então ela decidiu comer a sua parte. (WAAL, F. O último abraço da matriarca: as emoções dos animais e o que elas revelam sobre nós. Rio de Janeiro: Zahar, 2021, p. 293).

Como se pode notar, esses e outros exemplos são indicativos de que a prática de fazer comparações não traduz necessariamente a ideia de um “comércio”, mas antes a ideia de um “jogo de equivalências mútuas” que põe em evidência a regra de reciprocidade e da colaboração. Neste caso, se há sempre um “preço a ser pago” é porque já existe (subsiste? preexiste?) um “custo” embutido na própria organização coletiva da vida em comum. Não há “comunidade” possível entre credor e devedor, como pensou Nietzsche, a menos que ambos já disponham de fato de uma “base fiduciária”* (que é a própria “comunidade”!) capaz de torná-los comparáveis um com o outro em razão justamente do que valem no contexto também de outras relações. Quem deve nunca deve somente a um só, mas àqueles ainda a quem o próprio credor deve alguma coisa e assim por diante! Em outras palavras, o “complexo de comunidade” citado por Nietzsche como um produto criado pela noção de “dívida” é, no fundo, a condição jurídica de qualquer relação social, a verdadeira força constituinte do vínculo político, e não uma espécie de embuste moral supostamente fabricado pelos mais fracos em detrimento dos mais fortes. Por essa razão, não chega a ser surpresa verificarmos também no reino animal essa disposição igualmente estruturada em torno da punição daqueles que ameaçam prejudicar a vida do grupo tomando para si mais do que deveriam ou deixando de cumprir determinadas tarefas. Pertencer é, afinal, “con-tribuir” (suum cuique tribuere!). Não pagar esse “preço” pode custar, inclusive, o sofrimento de penas impostas que vão desde a forma de uma simples reprimenda ao “infrator” até mesmo a sua rejeição completa pelo grupo – incluindo aí, obviamente, retaliações e ataques enfurecidos de violência justiceira.

Mas o que essa última hipótese discutida acima pode nos oferecer como síntese da relação entre “justiça” e “dívida”? Quer dizer que isso a que chamamos de “justiça”, isso que nos autoriza a dizer que há coisas que podem ser cobradas e/ou levadas à “conta” de alguém (a dívida!), criando com isso a noção correspondente de “obrigação”, parece guardar relação com a ideia de um “ônus” ligado à própria organização produtiva da vida em comum. Não querer compartilhá-lo já é prova de uma injustiça. Daí porque quanto menos dispostos a arcar com ele, mais sujeitos estamos a sofrer sanções e repreensões do grupo. Trata-se, portanto, de uma lógica econômica no pleno sentido dessa palavra (eco = casa; nomos = norma; “norma da casa”), uma lógica ainda anterior ao modelo comercial cogitado por Nietzsche e que sinaliza para a exigência de uma “divisão” (outro sinônimo de dívida) de papéis (direitos e deveres) no interior de qualquer ordem social. Como nos lembra a etimologia mesma da palavra “obrigação” (do latim ob-ligare: “prender a”), trata-se de uma normatividade própria das formas associativas cujo funcionamento e organização dependem, de modo constitutivo, da contrapartida produtiva (o “con-tributo“, a dívida!) de cada parte beneficiária. A busca por justiça pode ser lida, dessa maneira, como o verdadeiro “princípio econômico” da vida em comum.

* Uso aqui essa expressão em um sentido bem próximo ao apresentado por Paul Ricoeur em um trabalho sobre o conceito de “sujeito de direito” (Paul Ricoeur. O Justo, 1. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008; págs. 21-31) e a exigência que ele comporta da mediação institucional da figura de um terceiro na relação entre um “eu” e um “tu”.

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