Na filosofia moral de Paul Ricoeur, encontramos a ideia segundo a qual o conceito de justiça deve ser compreendido com base em três significados fundamentais, cada um deles associado, por sua vez, a três diferentes (porém articulados) níveis da reflexão ética. No primeiro deles, chamado de teleológico, o justo aparece, desde o início, como uma qualidade atribuída às instituições responsáveis por garantir que ninguém seja prejudicado na condição de agentes e pacientes da ação uns dos outros (o “bem do outro”, na clássica formulação de Aristóteles). Trata-se, a rigor, do último elemento que caracteriza a chamada mirada ética (viver bem com e para os outros em instituições justas), isto é, o desejo de alguém cuja vida, ao ser encarada como uma relação social com outros cidadãos, resguarda ainda o anseio de agir também em benefício de toda a comunidade, incluindo aqueles que não mantêm com ele a proximidade de um vínculo afetivo mais forte (como nas relações de amizade, por exemplo). Como sintetiza o autor: “A virtude da justiça se estabelece numa relação de distância com o outro, tão originária quanto a relação de proximidade com outrem ofertado em seu rosto e em sua voz. Essa relação com o outro é, ouso dizer, imediatamente mediada pela instituição. O outro, segundo a amizade, é o tu; o outro, segundo a justiça, é o cada um, conforme indica o adágio latino: suum cuique tribuere, a cada um o que é seu.” (RICOEUR, 2008, p. 8). Ora, é justamente em nome dessa exigência fundamental da justiça que Paul Ricoeur defende também a necessidade de uma “subida” do nível teleológico para o segundo nível da reflexão ética, chamado de deontológico, quando então devemos examinar se os juízos que são feitos sobre o que é bom (para nós mesmos, para nossos próximos e/ou para os distantes) provam-se realmente válidos à luz do critério da universalização. E por quê? Porque, segundo Paul Ricoeur, na esteira agora de Kant, apenas juízos universalizáveis podem ser reconhecidos como correlatos formais da imparcialidade, entendida como expressão elementar de uma vontade considerada essencialmente livre e não determinada por seus próprios interesses particulares (1). Trata-se, portanto, do reino da norma, do imperativo moral, que Ricoeur procura distinguir, sem contudo separar, da mirada ética. Resume o autor: “O que está em jogo aí é principalmente o estatuto formal que se vincula à reivindicação universal, quando a lei não é simplesmente moral, mas lei jurídica.” (RICOUER, 2008, p.13). Neste contexto, o justo se confunde igualmente com a própria figura do legal, uma vez que é somente no âmbito do direito que certas obrigações (no sentido literal e etimológico da palavra: ob–ligare, “prender a”) podem ser levadas à conta dos cidadãos perante a força legítima de uma autoridade comum constituída. Para Ricoeur, todavia, a reflexão ética jamais poderia culminar na mera assunção de normas supostamente válidas: “(…) é que o senso de justiça, que se mantém enraizado no querer a vida boa e encontra a formulação mais ascética no formalismo procedimental, só chega à plenitude concreta no estágio da aplicação da norma no exercício do julgamento em situação.” (RICOEUR, 2008, p.19). Pois são nessas circunstâncias singulares e difíceis de tomada de decisão, nas quais não raro imperam casos e conflitos incomensuráveis (casos impossíveis de estarem situados sob o signo de uma norma clara e unívoca), que somos compelidos a nos mover para um terceiro nível da reflexão ética, chamado prudencial (ou sabedoria prática). É nesse nível, sobretudo, que o autor vislumbra o justo na figura irredutível do equitativo, ou seja, quando o desejo de fazer justiça já não pode mais evitar a sua própria transfiguração trágica na forma de uma convicção solidária às vozes mais sofridas e silenciadas.
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Como se pode concluir, a distinção que Ricoeur faz entre “ética” e “moral” cumpre apenas uma função didática relativa à análise que ele propõe desses três níveis de reflexão apontados acima. A distinção no plano conceitual não significa nenhuma separação absoluta no plano prático. Em Ricoeur, a moral designa a região das normas (além do sentimento de “estar obrigado”), mas a própria aplicação das normas morais também está sujeita a uma avaliação prudencial de seus verdadeiros efeitos nos casos concretos. Pensemos no próprio exemplo kantiano a respeito do dever de “não mentir”. Trata-se de uma norma moral porque ergue uma pretensão de validade universal, ou seja, presume não ser justo estabelecer como diretriz moral das relações humanas o instituto da mentira, sob pena de sacrificar a integridade mesma dessas relações em vista do imperativo de tratar cada qual como um fim em si mesmo, e não como meio. Mas isso não significa que eu realmente não deva mentir perante determinadas situações concretas em que dizer a verdade pode entrar em sério conflito com outra norma moral que prescreve o dever, por exemplo, de não causarmos prejuízos a pessoas inocentes (penso aqui no clássico exemplo do que diríamos a um oficial nazista que nos perguntasse se estamos escondendo judeus em casa). É aqui que a reflexão ética atinge o nível da sabedoria prática orientado pelo conselho da prudência e em vista novamente da solicitude com e para os outros. A “justiça” aqui permanece na figura de uma decisão equitativa capaz de encontrar uma solução para conflitos entre fatos e normas para enfim traduzir uma escolha que expresse melhor a afirmação da solicitude. A norma moral é importante, mas é insuficiente para guiar a ação em muitos casos concretos.
(1) Em termos kantianos, toda norma moral ergue uma pretensão de validade universal na medida em que prescreve: a) o comportamento equivalente ao exemplo de uma vontade igualmente boa (imparcial) para todos; e b) a mesma conduta para um universo de seres igualmente imputáveis, isto é, cujas ações estão sujeitas aos mesmos critérios de condenação/absolvição. A universalidade, neste caso, é um corolário normativo do princípio segundo o qual todos são igualmente dignos perante a lei. Por exemplo, a norma que prescreve a interdição da tortura pretende ser um dever moral (ou seja, universal) porque visa à proibição de qualquer ser humano fazer (deliberadamente) o mal ao outro, não importa a posição que o agente ocupe na sociedade ou qual identidade afirme possuir. Do contrário, seríamos obrigados a concluir que pode haver casos em que a tortura fosse justificável, a depender apenas das características e/ou interesses particulares do sujeito que realiza a ação. Em suma, a universalidade está do lado daquilo que é válido sobretudo como um dever, de modo a permitir também o reconhecimento de quem julgamos compartilhar conosco a condição jurídica da imputabilidade.
Referência:
(Paul Ricoeur. O Justo, 1. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008)