O primeiro passo da ética

Uma maneira de pensarmos a ética é pensando-a como uma reflexão sobre como podemos julgar o nosso próprio senso de justiça. Neste caso, caberia a ela o primeiríssimo passo de mostrar como e por que aprendemos justamente (justamente?) a julgar. Poderia começar assim pela descrição de um corpo nascido de uma verdadeira ruptura orgânica, isto é, cuja vida não depende mais do vínculo umbilical, e sim de uma luta permanente com o meio a fim de voltar a experimentar um relativo padrão de bem-estar – nossa mais antiga reivindicação! Daí seguiria então para uma explicação mais detalhada dessa mesma luta, revelando-a como um processo de desenvolvimento das nossas disposições naturais em constante interação com o ambiente, até que fique demonstrado como cada um de nós acaba finalmente se transformando num “eu” capaz de estabelecer novos laços com o mundo, sejam eles mais ou menos gratificantes. A partir desse ponto, nada mais pareceria tão difícil de entender sobre o que está realmente “em jogo” na ética. Ou melhor: na vida que precisamos construir em comum para que nenhuma frustração sentida, por mais irrelevante que pareça, deixe de ser devidamente recompensada por alguma promessa de satisfação (e por que não?). Eis aqui o “mistério” da reciprocidade, o código não-escrito da moralidade, o qual só não interessa servir como guia ao egoísta e ao altruísta (ambos, por diferentes razões, talvez já completamente alienados de sua “condição social”). Um sinal vermelho pode nos parecer às vezes irritante, mas a irritação cederá quando prevalecer a certeza de que o respeito às leis de trânsito pode bem vir a ser o exemplo que anda faltando (o “dever universalmente válido”) para salvarmos precisamente a vida daqueles que mais amamos. Como se vê, aqui já não haveria motivo para opormos Kant e Aristóteles: o dever tornou-se um aliado do desejo! O senso de justiça é essa delicada inserção afetiva numa economia prática de “perdas” e “ganhos”, um cálculo que também efetuamos a partir do quanto aprendemos a amar e a confiar uns nos outros, de como alimentamos mutuamente as nossas expectativas; e de como justificamos, enfim, a condenação daquelas que não nos parecem muito úteis para evitarmos acumular mais prejuízos ainda.

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